Refletindo o Evangelho do Domingo
Pe. Thomaz Hughes, SVD
PENTECOSTES - ANO B
At 2, 1-11 e Jo 20, 19-23
“Todos ficaram repletos do Espírito Santo”
A liturgia de hoje nos apresenta a
descida do Espírito Santo sobre a comunidade dos discípulos, em duas tradições
- a de Lucas (Atos) e da Comunidade do Discípulo Amado (João 20). Salta aos
olhos que uma leitura fundamentalista da bíblia - infelizmente ainda muito
comum entre nós - leva a gente a um beco sem saída, pois em João, a
Ressurreição, a Ascensão e a Descida do Espírito se deram no mesmo dia
(Páscoa), enquanto Lucas separa os três eventos, durante um período de cinqüenta
dias. Assim, devemos ler os textos dentro dos interesses teológicos dos
diversos autores - os 40 dias de Lucas, por exemplo, entre a Ressurreição e a
Ascensão, correspondem aos 40 dias da preparação de Jesus no deserto, para a
sua missão. Pois, como Jesus ficou “repleto do Espírito Santo” (Lc 4, 1) e se
lançou na sua missão “com a força do Espírito” (Lc 4, 14), a comunidade cristã
se preparou durante o mesmo período, e na festa judaica de Pentecostes também
experimentou que “todos ficaram repletos do Espírito Santo” (At , 2, 4).
Uma leitura superficial do texto de
Atos dá a impressão de um relato uniforme e coeso – mas, isso se deve à
habilidade literária do autor. Na verdade, ele costurou um relato só, tecendo
elementos de duas tradições. Uma leitura cuidadosa nos mostra essas duas
tradições: a primeira está nos vv.1-4, uma tradição mais antiga e apocalíptica;
a segunda está nos vv. 5-11, mais profética e missionária.
Nos primeiros versículos, estamos no ambiente de uma
casa, onde os discípulos se reuniram. Atos nos faz lembrar que estavam reunidos
três grupos distintos, os Onze, as mulheres, entre as quais Maria a mãe de
Jesus, e os irmãos do Senhor. Embora talvez representem três tradições
cristológicas diferentes no tempo de Lucas, ele faz questão de enfatizar que
todos estavam reunidos com “os mesmos sentimentos, e eram assíduos na oração”
(At 1, 14). Ou seja, a descida do Espírito não é algo mágico, mas conseqüência
da unidade na fé e no seguimento do projeto de Jesus.
O primeiro relato (vv. 1-4) usa imagens apocalípticas,
símbolos da teofania, ou da manifestação da presença de Deus - o som de um
vendaval e as línguas de fogo. A expressão externa da descida do Espírito é o
“falar em outras línguas” (não o “falar em línguas” - glossolalia - tão
valorizado por muitos grupos de cunho neopentecostal).
A segunda tradição muda o enfoque. O ambiente muda, da
casa para um lugar público - provavelmente o pátio do Templo. O sinal visível
da presença do Espírito não é mais o falar em outras línguas, mas o fato que
todos os presentes pudessem “ouvir, na sua própria língua, os discípulos
falarem” (At 1, 6). O termo “ouvir” aqui implica também “compreender”. Três
vezes o relato destaca o fato dos presentes poderem “ouvir” na sua própria
língua (vv. 6.8.11). Assim, Lucas quer enfatizar que o dom do Espírito Santo
tem um objetivo missionário e profético - de fazer com que toda a humanidade
possa ouvir e compreender a nova linguagem, que une todas as raças e culturas -
ou seja, a do amor, da solidariedade, do projeto de Jesus, do Reino de Deus.
A lista dos presentes tem um sentido especial - estão
mencionadas raças, áreas geográficas, culturas e religiões. Todos ouvem as
maravilhas do Senhor. Lucas ensina que a aceitação do Evangelho não exige
deixar a identidade cultural. Contesta a dominação cultural, ou seja, a
identificação do Evangelho com uma cultura específica. Durante séculos, este
fato foi esquecido nas Igrejas, e identificava-se o Evangelho com a sua
expressão cultural européia. Nos últimos anos, a Igreja tem insistido muito na
necessidade da “inculturação”, de anunciar e vivenciar a mensagem de Jesus
dentro das expressões culturais das diversas raças e etnias. O texto é uma
releitura da Torre de Babel, onde a língua única era o instrumento de um
projeto de dominação (uma torre até o céu) que foi destruído por Deus pela
diversidade de línguas. Nenhuma cultura ou etnia pode identificar o Evangelho
com a sua expressão cultural dele.
Hoje é uma grande festa missionária. Marca a transformação
da Igreja de uma seita judaica em uma comunidade universal, missionária, mas
não proselitista, comprometida com a construção do Reino de Deus “até os
confins da terra”. Mas, Lucas insiste que a experiência de Pentecostes não se
limita a um evento - é uma experiência contínua - por isso relata novas
descidas do Espírito Santo: em uma comunidade em oração em uma casa (At 4, 31),
sobre os samaritanos (At 8, 17), e, para o espanto dos judeu-cristãos
ortodoxos, sobre os pagãos na casa do Cornélio (At 10, 4). Pois, o Espírito
Santo sopra onde quer, sobre quem quer, em favor do Reino de Deus. Aprendamos
do texto de Atos, e celebremos a nossa vocação missionária, não a de falar em
línguas, mas de falar a língua única do amor e do compromisso com o Reino, para
que a mensagem do Evangelho penetre todos os povos, culturas, raças e etnias.
Jo 20, 19-23
No texto
anterior ao de hoje, a Maria Madalena trouxe a notícia da Ressurreição aos
discípulos incrédulos. Agora é o próprio Jesus que aparece a eles. Não há
reprovação nem queixa nas suas palavras, apesar da infidelidade de todos eles,
mas somente a alegria e a paz, que já tinha prometido no último discurso. Duas
vezes Jesus proclama o seu desejo para a comunidade dos seus discípulos - “A
paz esteja com vocês”. O nosso termo “paz” procura traduzir - embora de uma
maneira inadequada - o termo hebraico “Shalom!”, que é muito mais do que “paz”
conforme o nosso mundo a compreende. O “Shalom” é a paz que vem da presença de
Deus, da justiça do Reino. Como cantamos, “da justiça nascerá a paz.” Jesus não
promete a paz do comodismo; mas, pelo contrário, envia os seus discípulos na
missão árdua em favor do Reino, prometendo o Shalom, pois, Ele nunca abandonará
quem procura viver na fidelidade ao projeto de Deus.
Jesus soprou
sobre os discípulos, como Deus fez (é o mesmo termo) sobre Adão quando infundiu
nele o espírito de vida; Jesus os recria com o Espírito Santo.
Normalmente
imaginamos o Espírito Santo descendo sobre os discípulos em Pentecostes; mas,
aquilo era a descida oficial e pública do Espírito para dirigir a missão da
Igreja no mundo. Para João, o dom do Espírito, que da sua natureza é invisível,
flui da glorificação de Jesus, da sua volta ao Pai. O dom do Espírito neste
texto tem a ver com o perdão dos pecados.
Que a celebração nos anime
para que busquemos a criação de um mundo onde realmente possa reinar o Shalom,
não a paz falsa da opressão e injustiça, mas do Reino de Deus, fruto de
justiça, solidariedade e fraternidade. Jesus nos deu o Espírito Santo - agora
depende de nós usarmos essa força que temos, na construção do mundo que Deus
quer.