segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Dia do Natal - Missa do Dia - 25 dezembro

Refletindo o Evangelho do Domingo

Pe. Thomaz Hughes, SVD

Dia do Natal - Missa do Dia - 25 dezembro

João 1, 1-18

“E a Palavra se fez carne e habitou entre nós”

 
Comunicação é atividade primordial de toda a humanidade, e o seu instrumento privilegiado é a palavra. Diariamente somos sujeitados a uma enxurrada de palavras, que muitas vezes servem para ofuscar a verdade, e desvirtuar a justiça, funcionando como instrumento de opressão, em lugar de solidariedade humana. Assim, é bom iniciar a nossa reflexão com uma consideração sobre o conceito que está atrás do termo “Palavra”.
Obviamente, a primeira referência para nós é a Palavra de Deus, com destaque para a sua Palavra comunicada através da Sagrada Escritura. No Antigo Testamento, o tema da Palavra Divina não é objeto de especulação abstrata, como é o caso com outras correntes de pensamento, por exemplo, o “Logos” dos filósofos alexandrinos. É antes de tudo um fato experimental: Deus fala diretamente aos homens e mulheres, ao seu povo e a toda a humanidade.
A Palavra de Deus é comunicação, auto-expressão e acontecimento salvífico. Por isso, podemos afirmar que a própria criação assinala o começo da história da auto-comunicação e ação salvadora de Deus. Assim, podemos afirmar que a Palavra de Deus pode ser considerada sob dois aspectos, indissociáveis mas distintos: ela revela e ela age. Ela revela quem é o verdadeiro Deus, pelo que ele faz. O Deus dos hebreus não é o deus dos filósofos, distante, imutável, objeto de estudo e fria análise, mas um Deus que se revela na ação da sua Palavra criadora, congregadora e libertadora. Isso fica claro no texto que podemos considerar a chave de toda a Escritura, pois o resto da Bíblia é consequência daquilo que ela revela: “Eu vi muito bem a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi o seu clamor contra seus opressores, e conheço os seus sofrimentos. Por isso, desci para libertá-lo do poder dos egípcios” (Êx 3, 7-8).
Esse “descer” do Deus bíblico tem seu auge na Encarnação, como lemos no Prólogo do Quarto Evangelho, no nosso texto de reflexão: “No início era a Palavra, e a Palavra estava com Deus... e a Palavra era Deus... e a Palavra se fez carne e armou sua tenda no meio de nós” (Jo 1, 1.14).
O projeto de Deus acontece quando essa palavra se fez homem, armou a sua tenda (ou acampou) entre nós. O verbo grego usado “eskênôsen” deriva-se do termo “skêne, que significa uma tenda de campanha. Na visão do Quarto Evangelho, a Palavra, o Verbo Divino, “armou sua tenda” no meio da humanidade, não “ergueu o seu Templo!” Templo é fixo, tenda é móvel, ou seja, aonde anda o povo, lá estará a Palavra Viva de Deus, encarnada na pessoa e projeto de Jesus de Nazaré. Nele e por ele a Palavra age, operando a salvação aqui na terra. Podemos afirmar que o mistério da Palavra tem agora como centro a pessoa de Jesus Cristo, inseparável da sua missão e projeto.
Mas, essa encarnação tornou-se o divisor das águas para a humanidade. Pois, “veio aos seus e os seus não a acolheram”. Assim o nosso texto desafia qualquer acomodação que porventura possa existir entre os cristãos, pois “acolher” a Palavra Encarnada não é em primeiro lugar uma crença intelectual, mas o assumir de um projeto de vida, o seguimento de Jesus de Nazaré. É uma adesão radical à pessoa e missão de Jesus, continuada em nós hoje. Como diz o Evangelho de Mateus, “nem todo aquele que me disser “Senhor, senhor!” entrará no reino de Deus, mas aquele que cumprir a vontade de meu Pai do céu” (Mt 7, 21). O nosso texto nos anima para que não esfriemos no seguimento de Jesus, e nos assegura: “Aos que a receberam, os tornou capazes de ser filhos de Deus, os que creram nele, os que não nasceram do sangue, nem do desejo da carne, nem do desejo do homem, mas de Deus” (Jo 1, 12s).
Porém, a tomada de consciência de Jesus da sua missão, da sua identidade, não foi algo automático. A Epístola aos Hebreus enfatiza claramente o processo pelo qual Jesus passou, quando diz: “Embora sendo Filho de Deus, aprendeu a ser obediente através dos seus sofrimentos” (Hb 5, 8).
Vale a pena lembrar que o sentido mais profundo do termo “obediente” vem do Latim “ob-audire”, que é escutar ou ouvir a vontade e Deus - e pô-la em prática! Ou seja, é mais uma obediência profética, (fazendo da vida de Jesus uma expressão viva da Palavra e Vontade de Deus), do que meramente disciplinar, como muitas vezes foi na prática nossa. Dentro desse processo, não há dúvida que a Palavra de Deus nas Escrituras judaicas teve um lugar de destaque para Jesus. Durante trinta anos, Jesus alimentou a sua espiritualidade, a sua fé, nas mesmas fontes do povo sofrido do interior de Palestina - na espiritualidade dos “Anawim”, os “Pobres de Javé”, que davam destaque especial para Segundo e Terceiro Isaías, e Segundo Zacarias que fomentavam esperança e coragem, afirmando a presença de Javé Libertador entre os pobres e aflitos, (p. ex: os Quatro Cantos do Servo de Javé, Is 42, 1-9; 49, 49, 1-9ª; 50, 4-11; 52,13-53,12; Is 61, 1-11; Zc 9,9-11 e Sf 3,11-13). Foi no confronto entre a Palavra de Deus, transmitida nas escrituras através dessas vozes proféticas, e a realidade dura do seu povo sofrido e explorado, que Jesus clareou e concretizou a sua identidade e missão, fazendo com que, segundo Marcos, a prisão de João fosse o sinal para que ele assumisse o manto profético messiânico, não conforme a expectativa da sociedade, mas dentro da visão dos pobres de Javé: “Depois que João Batista foi preso, Jesus voltou para a Galileia, pregando a Boa Notícia de Deus” (Mc 1, 14s).
Assim, nós também temos que ler esse e qualquer texto bíblico em diálogo com a realidade do nosso povo - mas de maneira especial do povo excluído, sofrido e marginalizado, como Jesus fez. O Verbo fez-se homem em Jesus de Nazaré para revelar o nome do Pai e anunciar o Reino do seu amor. Esse amor sem limites Jesus fê-lo visível no mundo pecador por sua incondicional doação a todos os homens, sobretudo aos sofredores. Pois, a palavra escrita só se torna Palavra Viva, expressão do Verbo Divino, quando encarnada na realidade do povo, seguindo as opções concretas de Jesus.
A nossa identidade de discípulos/as-missionários/as, a nossa identidade de cristãos, a partir do nosso batismo, brota desse exemplo do Verbo Encarnado, “que armou a sua tenda entre nós”. A fonte da espiritualidade de Jesus de Nazaré foi mais em sintonia com a espiritualidade do povo do “anawim”, do que com a visão centralizadora e legalista do Templo e dos escribas. Jesus descobriu a sua missão e a colocou em prática a partir da sua prática de diálogo - com o Pai, com o povo, com as escrituras e com a situação real sócio-político-religiosa dos moradores de Galileia. Ser cristão implica encarnar essa mesma prática em nossa obra evangelizadora, onde estivermos. Longe de termos a atitude dos escribas e fariseus, convencidos como eram de ter toda a verdade sobre Deus, temos que cultivar a atitude de Jesus em diálogo com o pobre, com pessoas de outras culturas e expressões religiosas - e em muitos lugares essas categorias serão quase que sinônimas.
Temos o desafio de cultivarmos a espiritualidade da “tenda” mais do que do “Templo” - nem sempre fácil em uma Igreja cada vez mais clericalizada e onde frequentemente a identidade dos leigos é relegada a um nível secundário. Com a atitude do Verbo que se encarnou, é obrigação inerente na nossa identidade cristã viver em diálogo com todos, cultivando o respeito às experiências de Deus nas outras culturas e expressões religiosas, em uma atitude de verdadeiro diálogo, que não é uma atividade a mais, mas “uma atitude de “solidariedade, respeito e amor” (Gaudium et Spes 3), que deve permear todas as nossas atividades”.



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