Refletindo o Evangelho do Domingo
Pe. Thomaz Hughes, SVD
Festa da Santa Maria, Mãe de Deus e Dia
Mundial da Paz
Lc 2, 16-21
“Maria conservava todos esses fatos e
meditava sobre eles no seu coração”
Embora haja uma confusão sobre as referências
cronológicas nas narrativas da infância de Jesus, em Lucas, - pois Quirino não
foi governador no tempo de Herodes e não se tem informações extra-bíblicas
sobre um recenseamento feito por Augusto - a finalidade do autor é situar o
nascimento do Salvador bem dentro da história humana - e especialmente a
história humana dos pobres e excluídos. Jesus nasce filho de viajantes, forçados
a sair da sua casa pela força opressora do império, pois a finalidade de um
recenseamento era alistar todos para a cobrança de impostos. Assim, o Messias
nasce em condições subumanas e indignas - como nascem e se criam milhões de
crianças todos os anos na nossa sociedade atual. Como não teve lugar para eles
na “hospedaria” (um tipo de albergue para viajantes, onde os animais ficavam no
pátio, no primeiro andar tinha cozinha comunitária e no segundo andar
dormitórios, algo ainda comum em certas regiões do Oriente hoje), Maria dá à
luz em uma gruta ou estrebaria e deita Jesus em uma manjedoura.
Logo, Lucas introduz mais personagens tirados dos
excluídos da religião e sociedade de então - os pastores. No tempo de Jesus
eram considerados como delinquentes, dispostos sempre ao roubo e à pilhagem;
por isso, não mereciam confiança alguma e nem podiam testemunhar em juízo. É
importante notar que em Lucas são pessoas pertencentes a duas categorias
proibidas de dar testemunho em juízo (pastores e mulheres) que Deus escolhe
para testemunhar os dois eventos mais importantes da história - o nascimento e
a ressurreição do Salvador. Natal se torna festa de inclusão dos que a religião
oficial e a sociedade dominante excluíam - enquanto a maioria da classe
abastada da nossa sociedade atual celebra o Natal exatamente nos templos de
consumo de hoje - os Shoppings, onde pessoas pobres são excluídas do banquete
de poucos. Que contradição!
É importante refletir como Lucas nos apresenta a
pessoa da Maria neste texto. Enquanto todos os que ouviam os pastores
“assombravam-se” (v. 18), “Maria, porém, conservava isso e meditava tudo em seu
íntimo” (v. 19). Dois textos do Antigo Testamento usam o mesmo verbo grego (synetèrein): Gn 37, 11 e Dn 4, 28, para
descrever a perplexidade íntima de uma pessoa que procura entender o
significado profundo de um fato. Assim, Lucas enfatiza que Maria não captou de
imediato todo o sentido daquilo que ouviu, mas meditava as palavras, contemplando-as,
para descobrir o seu significado. Maria cresceu na fé, acolhendo e discernindo
o sentido profundo dos acontecimentos - se tornou peregrina na fé, modelo para
todos nós, nos convidando a nos mergulharmos nos relatos evangélicos,
contemplando os mistérios da vida de Jesus e o que eles podem significar para
nós hoje.
A festa de hoje, também Dia Mundial da Paz, nos faz
lembrar a mensagem dos anjos: “Glória a Deus no alto, e na terra paz aos homens
que ele ama” (v. 14). Aqui Lucas cria um binômio - dois elementos conjugados,
ou seja, uma maneira de dar glória a Deus no alto é a criação da paz entre as
pessoas aqui na terra. Atrás do termo “paz” há um cabedal de reflexão
teológica, vindo do Antigo Testamento. O nosso termo “paz” capta somente uma parte
do que significava a palavra hebraica “Shalom”, que não se limita a uma mera
ausência de violência física, mas inclui a realização de tudo que Deus deseja
para os seus filhos e filhas. Portanto, o texto natalino nos convida e desafia
para que demos glória a Deus através do nosso esforço em criar um mundo de Shalom
- onde todos possam “ter a vida e a vida em abundância!” (Jo 10, 10). Como o
conceito bíblico de “Shalom” foge um pouco dos nossos conceitos ocidentais,
anexo uma excelente reflexão sobre o termo, feito por Frei Ildo Perondi, OFM
Cap, de Londrina-PR (repetindo o que mandei ano passado). Shalom para todos/as!
Shalom!
Quando eu estava em Roma escrevendo a minha tese,
devia fazer uma análise do termo hebraico “Shalom”. Não estava contente com as
explicações dadas pelos dicionários, que em geral traduziam o termo por “Paz”.
Por isso, fui procurar um rabino hebreu, que muito carinhosamente me recebeu.
- Falar de Shalom é algo muito importante... -
disse-me ele. Talvez seja um dos termos hebraicos mais carregados de sentido e
força que temos em nossa língua. É certo que traduzir simplesmente por “Paz”
empobrece muito o sentido da palavra original.
Enquanto ele falava, calmamente, pegou um copo e
tomando uma jarra de água, foi colocando no copo muito devagar, deixando soar o
borbulhar da água. O copo foi enchendo, e quando mais chegava perto da borda
ele ia cuidadosamente derramando ainda água...
- Veja bem, não cabe mais nada. Nem uma gota de água
neste copo. Se eu colocar mais, vai derramar, vai transbordar. É quando tudo
está completo, é a plenitude. Está me entendendo?
Balancei a cabeça em sentido negativo, olhando para o
copo cheio de tal modo que não coubesse mais nada.
- O Shalom é isso, irmão meu. É o máximo que pode
caber. Quando eu desejo um Shalom a alguém, eu desejo todo o bem, tudo de bom,
tanto bem que mais do que isso é impossível desejar. Sinal da quitação, quando
não existe nada mais a pagar. Estás entendendo?
- Sim, agora entendi o que é o Shalom!
- Não ainda, irmão meu. Para entender bem o sentido do
Shalom é preciso receber o Shalom; é preciso ter o Shalom... Posso ver em você
perturbações, conflitos internos... Para você ter o Shalom é preciso que você
tenha a harmonia interna, que você equilibre dentro de você as forças, que se
sinta bem, que você esteja em harmonia consigo mesmo, que esteja em paz...
- Agora entendi...
- Ainda não... Você não está sozinho neste mundo. Você
convive com pessoas. As pessoas são importantes na nossa vida. E devemos estar
em relação de harmonia com elas. Harmonizar-se com as pessoas que estão perto
de nós; harmonizar-se com as pessoas que amamos e queremos bem; harmonizar-se
com as pessoas que não gostamos e que às vezes nos fazem mesmo o mal;
harmonizar-se com as pessoas que estão longe; harmonizar-se com as pessoas que
necessitam de paz, de ajuda, que vivem em dificuldades, que são excluídas, que
passam fome, dor, solidão... Quando nos harmonizamos com as pessoas então sim
temos o Shalom.
- Entendi...
- Mais um pouco... Não estamos sozinhos no mundo.
Vivemos rodeados pelas criaturas de Deus. Você está sentindo a cadeira onde
está sentado? Sente o chão onde firma os seus pés? Sente o ar que está
respirando? Escute! Aposto que não está ouvindo a beleza do canto do
passarinho, o cachorro que late, o grito da vida e da natureza, a suavidade do
vento... Estar em harmonia com a Criação, com as criaturas, com a vida... Isso
é também ter o Shalom.
- Agora estou entendendo...
- Tenha ainda um pouco de paciência. Irmão meu, você é
uma criatura, não o Criador. Como um ser criado, você deve estar em harmonia
constante com Deus. O Deus que te amou, e que pensou em ti no momento da
Criação. Para ter o verdadeiro Shalom, você deve estar em sintonia e em plena
harmonia com Deus, nosso Criador... Harmonize a tua vida com Ele, deixe que Ele
guie os teus passos. E então terás o Shalom.
- Acho que nunca vou entender o que é o Shalom...
- Não, agora você começou a entender o verdadeiro
sentido desta expressão hebraica. Nenhuma palavra das línguas modernas pode traduzir
toda a força e o conteúdo do Shalom da nossa língua mãe. Mas, só quando
conseguirmos harmonizar dentro de nós estas quatro dimensões é que poderemos
dizer que temos o Shalom; só então é que poderemos desejar verdadeiramente um Shalom.
Estar como um copo cheio onde não cabe mais nada; deixar o outro como um copo
repleto.
E me abraçando, olhando-me nos olhos, e então
desejou-me um Shalom...
Frei Ildo Perondi OFM Cap.
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