UMA REFLEXÃO SOBRE A HISTÓRIA DOS DISCÍPULOS
DE EMAÚS
Pe. Tomaz Hughes, SVD
Talvez,
um dos relatos mais conhecidos de Lucas seja a história dos dois discípulos na
estrada de Emaús. Aqui temos o retrato das suas comunidades - vacilando na fé,
descrentes, desanimadas, sem sentir a presença do Ressuscitado entre elas.
Lucas procura reanimar o seu pessoal, mostrando que eles não estão abandonados
- muito pelo contrário, estão caminhando junto com a presença do Senhor que
venceu a morte.
Essa história também nos pode ajudar bastante hoje,
pois nos indica como devemos usar a Bíblia para animar a nossa caminhada. Jesus
é o mestre da Bíblia; e aqui Ele ensina como aproveitar a Escritura para
iluminar os problemas práticos da nossa caminhada, e nos dar coragem na nossa
missão de evangelizadores.
O que temos aqui é realmente um pequeno drama em cinco
atos - um drama que nos mostra a pedagogia de Jesus. Vejamos mais de perto:
Primeiro
ato: vv 13 -19a: “Introdução”
O relato começa com as palavras “nesse mesmo dia”.
Devemos já fazer uma parada e nos perguntar “que dia”? Para nós seria o dia da
Ressurreição, mas para os dois discípulos era simplesmente o terceiro dia da
morte de Jesus! Dia de desânimo, de tristeza. “Os dois iam para um povoado
chamado Emaús, distante onze quilômetros de Jerusalém”.
Aqui é bom lembrar que o bom judeu não podia caminhar
mais do que um quilômetro no dia de sábado. Portanto, era impossível que eles
viajassem no dia anterior. Domingo é a sua primeira oportunidade de sair de
Jerusalém, e aproveitaram bem - já estão voltando para sua casa. A cena começa
com a desintegração da comunidade cristã. Tudo acabou, a comunidade se
dispersa, não há nem alegria nem esperança.
Quem eram eles? Sabemos do relato que um se chamava
Cléofas. E o outro? O Evangelho de João nos conta que a irmã de Maria, mãe do
Senhor, chamada Maria de Cléofas, estava junto à cruz (Jo 19, 25). Não seria
demais acreditar que os dois discípulos fossem um casal, Cléofas e a sua
esposa, voltando depois da peregrinação pascal à Jerusalém. Nunca saberemos com
certeza, mas é uma hipótese agradável e possível.
De repente, no caminho surge Jesus, sem que seja
reconhecido. Com isso, Lucas quer dizer que o Ressuscitado não é um defunto que
voltou a viver - mas, Ele tem uma nova maneira de ser, um corpo glorificado. É
importante notar como Jesus se comporta, através dos verbos que Lucas usa. Ele
“aproximou-se”, “caminhou com eles” e “perguntou”. Ele não veio “dando de
dedo”, nem dando explicações bíblicas. Ele criou um ambiente de fraternidade
onde seria possível explicar tanto a vida como a Bíblia! Quantas vezes isso
falta em nossos grupos, nossas comunidades - não nos aproximamos uns aos
outros, mantemos distância! Não caminhamos juntos, queremos dar soluções sem
conhecer a realidade dos nossos irmãos e irmãs! Por isso mesmo, muitas vezes
não as nossas reuniões têm efeito, os nossos encontros bíblicos.
O “ato” termina com a pergunta d’Ele: “O que é que
vocês andam discutindo pelo caminho” (v. 17), ou seja, Ele dá uma oportunidade
para que eles exponham a sua realidade, sem julgamento, sem moralismo. Ele
parte da realidade dos dois.
Segundo Ato:
vv 19b -24: “Os discípulos falam”
Diante da oportunidade de explicitar a sua realidade,
Cléofas não titubeia. Ele expõe com clareza a sua situação. Diante da morte de
Jesus ele frisa uma coisa importante: “nós esperávamos que Ele fosse o
libertador de Israel” (v. 21). Eles “esperavam”, portanto não esperam
mais nada. Aqui ressoam traços de decepção, desilusão, desânimo, até de uma
certa revolta contra Jesus, pois todas as suas esperanças tinham sido
desfeitas. Os seus sentimentos vão muito além de uma simples tristeza!
É importante notar também que Lucas explicita bem quem
foi quem matou Jesus - não foi o povo, foram grupos de interesse bem definidos:
“Nossos chefes dos sacerdotes e nossos chefes o entregaram para ser condenado à
morte, e o crucificaram” (v. 20)
Para não reduzir a morte de Jesus a uma fatalidade
qualquer, ou a algo desejado pelo Pai, é bom examinar mais profundamente esta
afirmação do Cléofas: Jesus foi morto, assassinado judicialmente pelos “chefes
dos sacerdotes” - um grupo de sacerdotes saduceus, que dominavam o comércio do
Templo, lucrando muito com a exploração do povo através da religião, e que viu
a sua hegemonia ameaçada pela pregação e pelo profetismo de Jesus.
Também foi morto pelos “chefes” ou “magistrados”, ou
seja, os membros do Sinédrio, que governava os judeus nos assuntos internos,
onde a maioria pertencia ao partido elitista dos saduceus (não dos fariseus),
colaboradores com o poder Romano, lucrando bastante com isso. Então, Jesus foi
morto não por acaso, mas porque ameaçava os privilégios da elite dominante! A
cruz era a consequência lógica da vida de Jesus!
Outro elemento importante é o fato de que eles
sabiam do túmulo vazio - dois dos apóstolos já tinham verificado a história das
mulheres. Mas, isso não dizia nada para eles! Aqui se destaca que a nossa fé
não se baseia no túmulo vazio! É a nossa fé na Ressurreição que explica por que
o túmulo estava vazio, e não o túmulo que dá consistência à nossa fé!
Terceiro
Ato: vv 25-27: a Bíblia
Agora, e só agora, depois de ter criado o ambiente e
escutado a realidade, é que Jesus usa a Escritura. Ele frisa que eles “custam
para entender e demoram para acreditar em tudo o que os profetas falaram” (v.
25). Notemos bem - não custaram para “saber”, mas para “entender e acreditar”.
Pois eram judeus piedosos, que, mesmo sendo analfabetos, conheciam de cor os
salmos e as profecias. O problema deles era, que embora conhecessem o livro da
Bíblia, e também o livro da vida, eles não conseguiam ligar as duas coisas.
Então Jesus “explica” as Escrituras - isto é, Ele não dá uma aula de exegese,
mas faz a ligação entre a vida deles e a Bíblia, iluminando a sua realidade com
a Palavra de Deus.
Quarto Ato:
vv 28-32: a partilha
Chegando em Emaús, os discípulos convidam Jesus para
entrar a e jantar com eles. Se realmente se trata de um casal, então seria
entrar na sua casa, no aconchego do seu lar, e não numa hospedaria, como
normalmente a gente supõe. Aqui temos o ponto central da história - pois até
agora a explicação bíblica, por tão bonita que pudesse ter sido, não mudou a
vida deles. Mas, agora sim. Jesus se põe à mesa e: “tomou o pão e abençoou,
depois o partiu e deu a eles” (v. 30). De propósito, Lucas usa as palavras que recordam
a Última Ceia. É a experiência da partilha, da comunidade! Agora o milagre
acontece: “Nisso os olhos dos discípulos se abriram e eles reconheceram Jesus”
(v. 31).
Neste mesmo momento, Jesus desaparece da frente deles!
Por quê? Porquê, uma vez feita a experiência da presença do Ressuscitado no
meio deles, eles não precisavam mais da “muleta” da sua presença física. Agora
eles caem dentro de si e reconhecem que “estava o nosso coração ardendo quando
Ele nos falava pelo caminho, e nos explicava as Escrituras?” (v. 32)
A Bíblia é capaz de fazer “arder o coração”, mas para
“abrir os olhos” é necessária também a experiência de comunidade, de
celebração, de partilha!
Quinto Ato:
vv 33-36: a missão
Se a história terminasse aqui, seria a história de uma
experiência bonita feita por duas pessoas. Isso não basta. Tal experiência da
presença do Senhor Ressuscitado exige a formação de uma comunidade fraterna de
missão. Os mesmos dois que de manhã fugiam de Jerusalém, lugar da morte, da
perseguição, do fracasso, de tardezinha se põem no caminho de volta! O que
mudou em Jerusalém durante o dia? Nada! Continua sendo o lugar de perigo, de
morte, de perseguição. Mas, mudou a cabeça dos dois. Em lugar de uma fé
pré-pascal, eles agora têm uma fé pós-pascal. Em lugar de desânimo, há
entusiasmo e coragem, pois, experimentaram a presença de Jesus Ressuscitado. A
história que começou com a comunidade se desintegrando, termina com a
comunidade se reintegrando, se unindo, na paz e na alegria, pois puderam
confirmar: “Realmente, o Senhor ressuscitou, e apareceu a Simão” (v. 34).
E os dois
de Emaús puderam contar: “O que tinha
acontecido no caminho, e como tinham reconhecido Jesus quando ele partiu o pão”
(v. 36).
Essa história pode servir para nós como
paradigma de um círculo bíblico, grupo de reflexão, ou seja, qual for o nome
que nós damos às nossas pequenas comunidades. Jesus liga quatro elementos
essenciais - a realidade, a Bíblia, a celebração partilhada e a comunidade. É
na união entre estes elementos que se revela a presença do Ressuscitado e a
vontade de Deus. É na interação destes aspectos da vida cristã que a Bíblia se
torna “Lâmpada para os meus pés, e luz para o meu caminho” (Sl 119, 105).
Procuremos unir estes elementos nas nossas reuniões e encontros, e descobriremos
como se concretiza o desejo do Salmista: “Oxalá vocês escutem hoje o que Ele
diz” (Sl 95, 7).
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